sexta-feira, 31 de março de 2006

Vulto...

Quis desaparecer para as sombras, tornar-me num espectro errante sem sentimentos. Tornar-me numa brisa fria que corta esquinas de ruas nuas. Nada mais. Não viver, não sentir, não amar, não odiar.

Queria que a minha pele se desfizesse e os meus ossos se enterrassem na terra. Lá aguardaria o fim de tudo. Do mundo, da humanidade. Da existência. Deixei-me cair no chão molhado. Nada importava. A vergonha era a ultima coisa que sentiria, a vergonha seria o meu túmulo.

Pensei em ficar ali sentado até o meu pó se fundir com o alcatrão. Esperaria a morte como quem espera pelo fim da tarde no verão. Ficaria calmo, não reclamaria. Nada me faria mudar, manteria os olhos abertos para poder chorar, para poder deixar a dor sair através de lágrimas.

Ali ficaria o meu espírito, tão leve naquele chão que nem o vento daria por ele. Caminhariam sobre mim se o deixasse. Não importava, ninguém me iria ver. São escolhas que se fazem, é o destino que escolhi para mim. Somos o que somos e não podemos fugir disso, nunca poderemos mudar. Mesmo que me levantasse e fugisse até ao Tibete o sol seria o sol, o vento seria o vento. As pessoas seriam as pessoas… e eu seria o mesmo. Ficaria ali, pequena sombra na esquina, caminhassem sobre mim e eu não o teria sentido. Esperaria o fim do mundo.

In "Desespero"

Carlos

quarta-feira, 29 de março de 2006

Não importa...

Sem dar bem conta tinha-me sentado num sítio onde as pessoas paravam para conversar, mas também ninguém olhou de lado para mim.

De cerveja na mão deixei-me estar. Fui apanhando as conversas pelo ar. Um rapaz dizia a uma rapariga para não levar algo a mal, que até a curtia muito. Notava-se que estava bêbado, falava com a cara demasiado perto dela. Ela, incomodada, queria ser salva, queria sair da frente daquele hálito. Clamava por uma amiga qualquer, uma que a tirasse dali. Mas não haveria ajuda para ela.

A outra amiga estava agarrada ao braço de um rapaz muito mais alto que ela. Ria-se das suas piadas mas não porque queria parecer bem ao pé dele. Ria-se porque achava mesmo piada. Ele por sua vez corava quando ela soltava uma gargalhada e instintivamente se chegava a ele. Provavelmente iriam acabar juntos. Eram demasiado carinhosos um com o outro. Demasiado cuidado que ele tinha, não lhe tocava com força, não a puxava. Deixava o seu corpo balançar com o dela, se ela se inclinava ele inclinava-se. Se ela lhe tocava nas costas ele arrepiava-se e mantinha-se direito. Estava nervoso.

Ao lado estava um outro rapaz, tinha roupas novas, muito novas mesmo, pareciam acabadas de estrear.

Dizia para quem o quisesse ouvir que, se dava com todos, para ele não havia problemas. Será que se poderia dar comigo?

Será que gostaria de juntar o seu casaco castanho e limpinho à sujidade do meu? Será que não olharia para mim de cima? Mas também, que raio importava isso. Tudo isto durou um cigarro e meia cerveja.

In "Desespero"

Carlos

domingo, 19 de março de 2006

Deixa-me sonhar...

Desta maneira vivíamos apenas através dos livros de Henry Miller para sentirmos nojo de Paris, vemos "Goodbye Lenine" para descobrirmos que mudanças aconteceram na Alemanha.

Acendemos um charro e ouvimos Led Zeppelin, The Doors e Dark, fechamos os olhos e abanamos a cabeça.

Sonhamos em ser Tony Wilson a assinar contratos com sangue num guardanapo de papel.

Choramos sozinhos porque não pertencemos a este mundo, queremos criar algo lendário e não conseguimos. É esta a nossa grande tragédia, um mundo cheio de sonhadores de 22 anos sem nada para fazer, ninguém confia em nós para revitalizar a cadeia de sonhos.

Não é a nossa geração que está morta, a nossa agarra-se com unhas e dentes aos sonhos. A próxima geração morrerá quando lhes formos dizer que não temos nada para lhes contar. Estudei, trabalhei, tive um filho e morri. O resto é estática.

In "Sucumbo" - Carlos

Eternidade

Podias ter dito para parar. Mas nem sequer pensaste nisso. Agora, com os meses de separação a darem-me sanidade, sei que podíamos ter parado. Ficamos simplesmente maravilhados, atordoados. O cheiro inebriante, pesado que entrava nos pulmões, que nos dizia que tínhamos pertencido um ao outro.

Era sempre de noite naquele banco traseiro do teu carro. Sempre com frio. Julgamo-nos especiais, ligados por algo transcendental quando te disse – tapa-te, estás com frio – olhaste para mim incrédula, sem saber o que dizer porque tinhas as pernas arrepiadas. Tinhas acabado de pensar que estavas com frio e eu disse-to. Ligados por telepatia. Pensamos logo que ficaríamos juntos para sempre. Já estávamos ligados.

Pensei que nada se podia comparar aquilo. Disse-te que cada momento passado naquele sítio era como uma porta para outra dimensão. A partir do momento em que te beijava, em que deslizavas para fora da tua roupa. A partir do momento em que te mordia o ombro, em que me arranhavas o pescoço, em que me mordias o queixo, era de outra dimensão, de outro plano.

Passei-te a mão pela coxa, senti a tua pele arrepiada. Estavas mesmo com frio, na altura ri-me com a coincidência, mas dei um valor enorme aquilo. Eram coisas que apenas aconteciam na nossa dimensão, no nosso mundo. Uma dimensão nocturna do banco traseiro do teu carro. Era tão diferente como aquele mundo que se abriu quando, pela primeira vez, toquei no teu corpo nu. Era um mundo tão poderoso como aquele que se abriu no dia em que fizemos amor pela primeira vez.

Podias ter parado… podias ter dito algo, podias ter dito que apenas tinhas prometido ser para sempre minha, apenas naquela noite eterna. Para sempre minha, num mundo eterno que se abria para nós, uma dimensão que acabava quando saímos daquele carro e íamos para casa. Uma eternidade nessa dimensão, uns meses no mundo real….

Carlos

25/02/06

Pára

Pára

Pára, só desta vez. Peço-te que pares de sonhar. Peço-te que pares. Põe um travão nesses teus sonhos. Pára de me chatear, pára de me atormentar, deixa-me estar na minha pasmaceira.

Não me faças chorar, por favor, só desta vez não me faças chorar. As tuas palavras não são sem significado, bem o sabes. Mas pára, só desta vez deixa-me estar em paz.

Não me ouves, pára de me destruir a calma que me permite continuar a levantar-me de manha. Pára por favor, tudo o que quero está lá fora. Essas palavras são desnecessárias, só podem fazer mal. Pára de me encurralares neste desespero. Não quero sonhar, quero ser pequeno, quero ser insignificante. Pára, eu não sou um génio. Eu não quero criar algo. Pára, essas palavras são violentas. Pára, não me magoes mais. Deixa-me ir embora, deixa-me sair deste beco. Pára por favor, essas palavras não são triviais. Pára, deixa-me estar sem criar. Pára, deixa-me em paz. Não quero pegar nessa caneta. Pára, não quero estar triste, não quero mais dor, quero largar a caneta e sentir-me a desvanecer. Não quero mais que tu me faças sofrer. Dorme por favor, adormece.

Eu lembro-me quando não eras assim. Lembro-me de quando eras simples. Pára de gritar por favor. Eu lembro-me da altura em que falavas comigo sem dor. Éramos felizes, éramos tão felizes na nossa ingenuidade. Não havia dor, peso. Não sabíamos nada, éramos tão felizes e inocentes. Lembras-te? O mundo não pesava. O mundo não magoava.

Lembras-te de quando tudo era simples?

Eu só queria parar de pensar… e o meu cérebro não me deixa…

Carlos

20/02/06