domingo, 26 de outubro de 2008

Eterno

Entra, não tenhas medo, isto é um lugar seguro, amigo de toda a gente. Larga a tua mala num canto escuro qualquer onde demónios não procurem pedaços da tua pele.

Passa a mão pela parede, deixa-a roubar-te um bocado da tua pele. Sabes que esta parede não é normal. Cada vez que lhe tocas ela rouba-te um pouco de ti, perdes uma pequena camada da tua pele, do teu ser… mas não te preocupes, enquanto perdes um bocadinho de ti na parede, ganhas ao mesmo tempo a imortalidade. Modificaste um pouco a realidade, a tua marca na parede. Não é agradável? Acabaste de criar algo sem saberes bem como. O teu ser pertence agora à infinidade. Sabes lá tu com quem te vais cruzar agora.

Já viste? Passado dois minutos uma jovem de cabelos compridos e escuros passa os dedos pelo mesmo sitio que tu. Acabou de se juntar a ti… um pouco dela acaba de se juntar a ti para todo o sempre.

Um amigo teu caminha pela cozinha rústica segurando uma cerveja fresca de baixa qualidade. Respira o mesmo ar que tu, caminha os mesmos passos… pensa os mesmos pensamentos. Pensa? Sente é talvez o melhor termo. Olha para ele, cozinha para uma cambada enorme de amigos. Sem ninguém ver toca em todos os sítios que uma rapariga de cabelo curto e despenteado tocou. Não há ali desespero, ele já se atirou contra a parede em quase desespero. Quando a caos se riu na cara dele não desistiu, pegou na cerveja, alinhou o seu passo e agora deixa-se ir, tocando levemente nos mesmos sítios, levando consigo pequenos toques de eternidade. Já nada faz uma verdadeira diferença.

Para de olhar para lado nenhum, faz-te parecer estranho e nunca quiseste isso. Sé ambíguo e invisível. Não há opinião, toca apenas na parede, junta-te aos outros sem eles o saberem. És eterno, come a refeição cozinhada pelo amigo, bebe a sua cerveja, ouve a sua música. Está na hora de lhe pertenceres a ele e a todos os outros que lá estão. Não olhes para a tua mala, ela tem segredos e os segredos são para estar lá, num canto escuro.

Ri-te, olha para um amigo que bem tenta ter a atenção que tu não queres nunca de modo nenhum. Põe-te no canto, ser visível nunca te fez bem. Toca na parede sem ninguém te ver; agora eles pertencem-te. Fuma se te agrada, bebe mesmo que te faça mal, come mesmo que te engorde, não importa. Toca na parede, só mais uma vez… mas não deixes que te vejam, irás ser eterno e nunca ninguém saberá disso.

domingo, 12 de outubro de 2008

O teu homem...


A voz falou!

Há um demónio à tua porta, esperando atrás da porta. Está molhado com a chuva de Dezembro, está molhado com ódio…

É um cão a uivar, a raspar as patas imundas na porta, há um demónio à tua porta… É o teu homem, tu própria o admites, conheces o cheiro, conheces o barulho ofegante da respiração; é o teu homem, há um demónio à tua porta.

Não me calo!! Ali está o teu demónio. Tem frio, está molhado, é malvado e quer mais, quer mais… dá-lhe mais, dá-lhe mais… Ouviste o que ele disse? Ele vem a subir até à tua porta. Não o obrigues a uivar, não o obrigues a arranhar a porta, não o obrigues a exigir…

Há um demónio à tua porta… e ele sente, ele cheira, ele raspa os dedos no corrimão da escada…

Ele vem aí! Eu sei!! Ele vem para a tua porta… Tira o vestido, ele vem aí, o demónio, o cão imundo, o teu homem vem para a tua porta, não o sentes?

Para que acendes a luz?! Não há luz, a tempestade destruiu os postes, estão no escuro. Estúpida!! Se a tempestade destruiu os postes de electricidade também não achas que deitou abaixo os telefones?! Pára de evitar o demónio, o cão, o teu homem está à tua porta.

Calma… isso, vês como consegues? É o teu homem, não é nenhum demónio, não é nenhum cão malcheiroso, isso é apenas a tua estúpida imaginação… Ouve-me antes a mim, eu sei, eu sei tudo e sei como te sentes; é o teu homem à tua porta. E cheira a cerveja!!! E então?! É teu homem…

Cala-te! Eu mando!! Eu faço tudo, eu mando em tudo…

Eu sou os teus olhos em todo o lado, tu vês por mim!

Eu sou a tua dor enquanto te penitencias, sou a vergonha quando te arrependes.

Eu sou a tua verdade enquanto mentes sobre essas marcas vergonhosas!

Tu sabes… é triste, mas é verdade… Eu faço as tuas desculpas, eu sou o teu álibi em tudo, eu sou a tua redenção, a tua desculpa perante Deus… Agora pára de ofender o teu homem!!

É demónio? Não é! Ou talvez seja… é grandioso como um, enorme em tamanho, o seu cheiro exala tudo o que é pérfido, o que é prazer culpado… Sim, é demónio nessa perspectiva mas tu sabes que gostas.

Isso, está escuro, pega no castiçal, esse castiçal negro, fino, trabalhado em ferro e cuja extremidade afiada contém uma vela redonda nela espetada. Vês como esse castiçal lhe serve? É belo, é mesmo para ele, para o teu homem, para o teu demónio único.

Abre-lhe a porta.

Olha a tua porta a abrir-se. O demónio entra a arfar, a suar, a expirar, a babar-se. Olha como o amas, como o admiras!

Cala-te! Essa sensação de adrenalina não é mais do que excitação por o veres! Não é medo! Vês como te deitas na cama de pernas abertas?!

Dá-te ao teu homem. Dá-te ou ele chateia-se, não grites, tu mereceste esse soco, lembra-te que ele manda em ti!

Agora sangras, a culpa é tua, bem te avisei… agora deixa-o arrancar a tua roupa. Choras? Porquê?? Aahhh….felicidade! Sente-o a entrar em ti… Vê como gostas…

Serás sempre dele, do teu demónio, nunca lhe escaparás, eu sei… eu sei como sempre irás gostar disto…





O que estás a fazer?! Larga o castiçal! Não vês como ele se sente bem assim?! Porque apagaste a vela? Ele precisa de luz, será que não pensas nele?! Sua puta egoísta!

Porque tiras a vela? Pára! Não lhe faças isso! Ele não merecia esse castiçal espetado no seu peito… tudo o que fez…foi por te amar…

Não me ouves?! Porque não te consigo falar? Pára! Eu amo-te…não me afastes: ouve-me… sempre tomei conta de ti…



A voz calou-se… e o choro ouviu-se, confundido com a chuva na janela…





Carlos Cardoso

06/12/04

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Accept loss forever...




Como sempre.... Kerouac é que tem razão. Ele sabe-a toda...

sábado, 4 de outubro de 2008

Sujeito nº1245 - Primeira Fase.

- Por favor entre, sem medo. Diga-me o que vé.

- Dr. B. Way, parece-me tudo demasiado claro.

- Não tenha medo, vá, abra os olhos, deixe-se habituar luz e, com todo o tempo que quiser, comece a descrever o que o rodeia.

- Está claro, muito claro. Tenho a janela entreaberta mas o sol da manha entra pelo quarto adentro. As cortinas são escuras mas estão nos cantos, não tapam nenhuma luz. Está demasiado claro, sente-se o calor que entra pela janela, deve ser verão… ou então uma primavera muito quente. Tenho a cama por fazer, um lençol apenas e a coberta enrudilhada ao fundo da cama. Uma coberta leve, de linho, é branca e tem um bordado azul, 3 riscas na vertical. Estão 4 posters na parede, bandas de metal, Summoning, Amon Amarth, uma imagem da Angela dos Arch Enemy e Iron Maiden; tenho dois quadros pendurandos na parede. Feitos por amigos que não sabiam o que lhes fazer. Um roupeiro com um misto de roupa desarrumada nas gavetas e, uma perfeita ordenação nas camisas e calças penduras em cabides. Uma estante com livros, quase todos clássicos americanos. Uma cadeira a cair de podre em frente à secretária desarrumada. Tenho lá cadernos, folhas, livros, alguns apontamentos que provavelmente pedi emprestado.

Tenho a mala no chão, cheia de pins, completamente suja, castanha quando devia ser verde claro.

- Sentes-te atraido por alguma coisa?

- A mala, lembro-me que guardava lá as coisas mais preciosas.

- Pega nela se te apetece.

- Já peguei, tem lá dentro um livro, um caderno de apontamentos, um caderno para as aulas, documentos, leitor de mp3, caneta, lápis… uma pedra e uma bolota.

- Uma pedra e uma bolota porqué?

- Acho que me lembro… a pedra foi quando tive uma discussão com uma namorada antiga, ela ignorou-me enquanto berrei por algo estupido… no fim deu-me uma pedra… porque não havia mais nada a dar.

- E a bolota?

- Já não me lembro… sei que tambem foi ela que ma deu, mas já não me recordo.

- Mais alguma coisa dentro da mala?

- Sim, um papel com notas imprimidas, notas de universidade. Acho que reprovei a tudo, não sei porqué, não me lembro de o ter feito.

- Alguma razão para teres reprovado a tudo?

- Acho que não Dr. B. Way… eu não acho que isto aconteceu mesmo.

- Que é aquilo em cima do teu armário?

- Não sei… parece… um cachimbo, um bong.

- Parece-te ou é?

- É sim, já lhe peguei, e ainda tem lá erva.

- Que queres fazer? Estás no teu quarto, é o teu mundo…

- Vou acendé-lo, não faz assim tão mal, só puxar um bocadinho, o suficiente para relaxar, aquelas notas incomodaram-me.

- Faz o que quiseres, como quiseres, é o teu quarto.

- Que se passsa agora?

- Os meus pais entraram a correr pelo quarto adentro, estão a gritar comigo, viram as minhas notas… estão a dizer que tenho trabalho para fazer e que sou um drogado de merda. A minha mãe dá-me um estalo, bate-me continuamente e pega-me pelos cabelos, esfrega-me a cara num papel que estava na secretária… não quero mais estar aqui.

- Começaste isto, agora acaba. Entraste no quarto, fumaste… agora enfrenta o teu pequeno destino. Mostra-me o que acontece.

- Não quero, ela está a chorar, o meu pai nem fala, dizem que me vão tirar da universidade e que me expulsam de casa… eu não quero mais fazer isto, não quero, não quero, não me obrigue a isto, por favor.

- Onde estás agora?

- Sozinho, sentado no quarto, não há livros nas prateleiras, os cadernos estão arrumados em caixotes debaixo da cama, os posters sairam, os quadros ainda lá estão; a cama tem 3 cobertores, chove lá fora. Está frio, tenho uma camisola de lã vestida. A secretária está arrumada, não está lá nada. A mala desapareceu. Só tenho camisas e calças e casacos no armário. Está tudo demasiado bem arrumado.

- Que queres tu?

- Não quero isto…

- Põe-no a dormir se faz favor.

- Sim Dr. B. Way.

- Quais foram os resultados da 1ª fase?

- Analisando o seu comportamento… culpa, sim, muita culpa.

- Então foi um sucesso, paciente nº 790 com culpa inserida. Passemos à fase seguinte.