segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O acordar

Perdoem os erros gramaticais... era jovenzinho eu...

O Acordar


Acordou, e de um momento para o outro sentiu a água quente do chuveiro arrancar-lhe o ultimo vestígio de sono do seu corpo. Acordou sem dificuldades, sentiu o corpo seco debaixo de um roupão confortável. No quarto abriu a janela para um sol resplandecente que não lhe magoou os olhos, o gato não lhe mordia as pernas, mas antes sentava-se ao seu lado ronronando levemente. A roupa e o seu corpo uniram-se. Estava confortável como nunca havia estado. Os livros estavam leves debaixo do seu braço, as palavras neles escritas não faziam sentido mas ele não se importava. O cabelo ao vento não ia parar irritantemente á frente dos olhos, nesse dia permanecia no sítio que lhe era destinado. O café soube-lhe bem, não estava quente, não estava frio. A barriga não o incomodava quando estava sentado no café. O copo de água era fresco e não sabia a nada. O jornal não fazia sentido, mas ele lia-o religiosamente como se fosse algo normal. Não havia barulho no café senão o dos pássaros lá fora, carros passavam na rua mas o barulho não o irritava. Estava em paz. Levantou-se sem dificuldade, o dinheiro apareceu no balcão, disse até logo ao velho e foi-se embora. Os sons soavam-lhe como musica e não como o som irritante e desconcertante que todos os dias lhe moía o cérebro quando saia á rua. Não tinha dores nos pés, não tinha dores nas pernas, não se sentia fatigado, mas sim rejuvenescido, estranhamente não o estranhou. Caminhou solenemente com os olhos colados no sol que não o magoava. O vento não lhe atirava a roupa para trás causando-lhe desconforto. Não estava frio. Deu-lhe uma vontade de correr para uma praia só porque imaginou a frescura de um mergulho no mar. Fechou os olhos e lá estava ele, mergulhado no meio das ondas, o corpo fresco mas sem dor, as ondas eram enormes mas não perigosas sentiu algo nas pernas que não o deixava afundar-se mas não lhe ligou, era algo que o empurrava para cima, mas apenas o suficiente para ficar com a cabeça de fora da agua, ficou lá durante horas e horas, a pele não lhe ficou roxa, o corpo não teve frio, caminhou para fora da agua, abriu os olhos e encontrou-se de novo na rua. Continuou e pôs-se a pensar, enquanto caminhava quase de olhos fechados, que não houve necessidade de apanhar o autocarro nesse dia, nunca mais iria apanhar o autocarro. Isto deu-lhe um sentimento de alegria pois odiava o autocarro fechado onde toda a gente cheirava mal. Era abafado, escuro, poeirento, barulhento e apertado, odiava o autocarro e o seu condutor. Odiava tudo o que lhe tirava o uso ás pernas e lhe cortava a decisão de onde parar e onde andar. Sentiu-se de repente atrasado, cada vez mais atrasado, correu sem parar, correu mais do que todas as outras pessoas que corriam arrastando malas, crianças ao colo que não lhes ligavam nenhuma nem desejavam correr, algumas arrastavam carcaças desfiguradas de cônjuges, namorados ou namoradas enquanto gritavam desalmadamente que tinham de ir mais rápido, muito rápido, tinham de lá chegar mais rápido. Correu mais rápido que eles todos, saltando sem dificuldades sobre bancos e corpos deitados no passeio que não aguentaram a correria e se tornaram vagabundos. Chegou, sentou-se para descansar e em um segundo o seu corpo recuperou, perdeu o suor e o mau cheiro. Olhou para as pessoas que chegavam a correr e a sentarem-se, elas não recuperavam, ficavam molhadas, submersas no seu esforço e suor, correram tanto para apenas chegarem a um sítio que nunca iria a lado nenhum. Perguntaram-lhe aos gritos se ele tinha visto, se tinha lido, se tinha feito, se tinha pensado, berravam-lhe na cara, quase cuspindo enquanto gritavam. Tentaram agarrar-lhe o pescoço para o abanar e o obrigar a responder, mas havia uma barreira invisível que os impedia de lhe tocarem. Calmamente fitou-os, respondeu-lhes que não, que não havia feito nada daquilo que eles queriam, ordenou-lhes que desaparecessem e eles desapareceram. Não se sentiu nunca intimidado com eles naquele dia. Naquele dia ele mandava, tudo lhe saia bem, tudo lhe corria bem. “Um bom dia”, pensou ele levantando-se da cadeira e saindo de novo para encontrar toda a gente parada á espera de uma voz que lhes dissessem para onde ir.
De repente uma voz saiu de uma janela qualquer. Ordenou-lhes que se dirigissem para as aulas. Não sabia se teria sido uma voz tirana ou apenas um sinal sonoro, ou mesmo uma voz imaginária dentro das suas cabeças que lhes dizia as horas correctas para se moverem para os seus lugares. Neste dia a voz não o irritou, pelo contrário a voz confortou-o. Contente por ter ouvido algo que lhe dissesse o que ele queria, dirigiu-se à sala de aula. Estava a sala vazia, entrou, escolheu o lugar ao lado da janela onde uma brisa agradável entrava e o sol lhe batia apenas nas pernas. A brisa nesse dia não lhe cheirava mal, não tinha o cheiro das máquinas que lá fora costumavam trabalhar. O sol não o chateava nem lhe dava calor a mais. Pelo contrário, aquecia-o até ao ponto de ele ficar mole e descontraído.
O professor era o mesmo de sempre, mas tinha perdido o ar malvado, andava descontraído, sorrindo para os alunos que tinham aparecido na sala sem mais nem menos.
Para sua admiração o professor sentou-se na mesa com as pernas cruzadas, falou alegremente aos alunos dizendo que naquele dia iriam descobrir algo que não sabiam.
Iriam pensar por eles próprios disse o professor. Os alunos contorceram-se desconfortavelmente nas suas cadeiras. Pensar por eles próprios, usar pensamentos criativos, que ideia nova era esta que eles não compreendiam? O professor rindo-se das suas figuras como quem ri de um gato que corre atrás de uma mosca acalmou-os.

- Calma gente… é apenas para vocês descobrirem que podem pensar como aqueles que vocês estudam, nunca serão avaliados pelo vosso pensamento, para dizer a verdade, vocês nunca foram em algum momento da vossa vida avaliados pela maneira como pensam.

Imediatamente os alunos calaram-se e ficaram tranquilos á excepção de alguns sussurros de admiração.
Acordado pela brisa agradável da janela, o rapaz alegrou-se, finalmente iria ser senhor dos seus pensamentos, iria poder expor o que achava.
O professor disse que deixaria os alunos escrever sobre o que quisessem, desde que fosse algo relacionado com algo que amassem.
Com isto ainda mais contente o rapaz ficou, escrever algo sobre as coisas que amava não seria difícil para ele. Pôs-se direito na cadeira e pegou na caneta para começar a escrever no papel. Olhou em frente e viu os outros alunos parados, a olhar uns para os outros sem saberem o que fazer. Pensou se eles amariam alguma coisa, pensou se eles estariam dispostos a dizer no papel o que amavam no que amavam.
Quando baixou a cabeça para o papel para começar a escrever sobre o que adorava e achava tão fascinante sobre mergulhos no mar, notou pelo canto do olho numa rapariga que nunca tinha visto. Sentada á janela a apanhar uma leve brisa enquanto o sol lhe aquecia as pernas, ela apoiava o cara na mão enquanto esperava que os outros acabassem de escrever. Ela tinha um molho de páginas escritas em cima da mesa. Ele pensou como é que ela poderia escrever sobre algo que amava tão rapidamente, que será que ela amava tanto ao ponto de poder dizer rapidamente tantas coisas sobre o que quer que amasse!?
Ele olhou para ela demoradamente. Tinha roupas que pareciam uma segunda pele de tão adequadas que eram, uma combinação da cor verde e da cor laranja nas roupas cobria-lhe o corpo. Os olhos verdes e grandes olhavam para a janela em direcção ao mar que se via da janela. O cabelo era ligeiramente encaracolado, ou talvez ondulado pelos ombros. Não parecia um cabelo normal, era vivo, se ela se mexia o cabelo mexia-se com ela, tinha uma cara vulgar mas linda, era uma daquelas caras que adquiria beleza quando fazia uma expressão, se ela sorria ou suspirava, a cara dela mudava e apareciam novos aspectos que não tinham antes aparecido. Era como olhar e estar á espera que aparecessem umas covinhas na cara dela quando sorria e se espreguiçava por estar tão preguiçosa.
O rapaz apaixonou-se logo ali, mas não era amor, era fascinação, paixão. Olhava-a sem conseguir desviar os olhos, ela deixou escapar um sorriso quando viu que ele a olhava.
O rapaz decidiu escrever sobre ela, achou logo ali que se tinha apaixonado e que a amava. Se tinha que escrever sobre algo que amava então porque não escrever sobre ela pensou ele. Concentrou-se e pousou a caneta no papel para começar a escrever. Mas quando ia para começar a escrever lembrou-se de que não sabia nada sobre ela, nem sequer o seu nome. Pensou que mesmo assim poderia escrever algo sobre ela, afinal de contas amava-a. Olhou de novo para ela e ficou de novo calmo e tentou escrever. Lentamente o sol desapareceu da sua janela, a tarde avançava e o sol também. Sem o sol o vento tornou-se frio e ele fechou a janela, minutos passaram e o papel estava em branco. O rapaz sentiu-se a ficar abafado naquele canto, tirou a camisola pois estava cheio de calor, quando a tirou, notou que a T-shirt estava molhada de suor. Sentiu-se desconfortável. O suor incomodava-o, fazia com que se sentisse sujo, inaceitável. Tentou mesmo assim escrever, olhou para a rapariga para se acalmar, mas quando levantou a cabeça ela olhava-o com o olhar triste, o sol também tinha desaparecido da sua janela e o vento tornara-se frio.
O professor entrara na sala com uma cara severa dizendo:
- O sol desapareceu, o vento tornou-se frio, estou chateado, espero que tenham escrito alguma coisa que me agrade.
O rapaz olhou para o seu papel onde inconscientemente escreveu sem parar “ Não conheço o que amo”. Escreveu isto em páginas e paginas e paginas. Entretanto o professor pedia as folhas de volta, todos tinham escrito algo, a rapariga entregou uma folha com uma frase apenas e atirou as outras pela janela.
O professor dirigiu-se a ele com uma cara severa dizendo:

- Isso demora muito ou queres escrever mais uma vez a mesma frase!?

Entregou as folhas e correu lá para fora ouvindo o professor a gritar entre risos sádicos e gozões:

- Para onde corres seu burro!? Até parece que tens algo á tua espera …

Chegando lá fora perguntou aos berros onde estava ela, para que lado tinha ido. Obrigou-os a responder quando os agarrou pelo pescoço. Apontaram-lhe a direcção certa e ele correu, correu ultrapassando todos até que a viu ao longe. Estranhou ter demorado tanto tempo a apanha-la visto que ela caminhava lentamente. Tentou correr mais depressa, queria alcança-la a todo o custo mas quanto mais corria, quanto mais desejava tocar-lhe, mais ela parecia distante. Desesperado tentou puxa-la, estava a centímetros dela mas mesmo assim parecia não conseguir tocar-lhe. Chorando ajoelhou-se e gritou para que ela parasse e o ouvisse.
A rapariga voltou-se para trás e perguntou-lhe porque corria ele quando caminhar na direcção certa bastava. Porque gritava ele quando falar bastava.
O rapaz levantou-se lentamente sem nunca tirar os olhos da cara da rapariga dizendo-lhe que a amava, que a queria conhecer porque a amava, queria saber tudo sobre ela porque a amava.
A rapariga desiludida respondeu com uma pergunta:

- Como podes amar o que não conheces!? Como podes tu querer conhecer algo que dizes amar, quando podes vir a odiar quando passares a conhecer!? Tu não me amas, nem nunca me amarás, poderás vir a odiar-me, mas nunca me amarás porque o que amas não é eu, mas outra pessoa com a minha cara…

O rapaz desiludido mas calmo, perguntou á rapariga o que tinha ela escrito no papel que entregou ao professor. Ela respondeu que tinha escrito que amava quem se dava ao luxo de perder horas e horas a conhecer as coisas antes de as amar.
Fechou os olhos zangado com as suas asneiras, quando os abriu já lá não estava a rapariga, ao longe ela caminhava debaixo do sol com a brisa a parecer que a empurrava para longe dele.
Levantou-se na sombra, uma nuvem teimava em tapar o sol por cima dele tornando o vento frio, vento que passou de uma brisa para um vento tão forte que parecia querer arrancar-lhe tudo o que tinha.
Olhou em volta e viu de novo as pessoas a correr, a arrastarem carcaças, e no meio de uma delas encontrou um homem triste, desesperado arrastando a carcaça desfigurada da sua mulher. Era horrível, ninguém dizia nada, todos passavam a correr pelo pobre homem que carregava a carcaça, deambulando pelo fim de tarde escuro e ventoso, sem rumo o homem chorava.
O rapaz dirigiu-se a ele e perguntou se ele queria ajuda, o homem respondeu:

- Que sabes tu!? Eu não sabia, eu não sabia. Ela morreu e eu não sabia, não sabia nada, como posso lembrar-me dela se não é dela que eu me lembro, se não posso carregar as suas memórias carrego a sua carcaça pois era isso apenas o que eu conhecia…

Voltou a casa e deitou-se, adormeceu.
Acordou, levantou-se e deu um passo, bateu com a perna na cadeira, injuriou tudo e todos, enquanto abria a janela o gato mordia-lhe os pés a dizer que queria brincar. Doíam-lhe os olhos da luz da janela, chovia lá fora. A sua mãe entrou no quarto a berrar com ele para ele se despachar para ir para as aulas. A água quente do chuveiro aleijava-lhe as costas, a roupa estava desconfortável e amarrotada porque não se tinha dado ao trabalho de a dobrar antes de se deitar na noite anterior.
Levou a mão ao bolso onde encontrou a carta da sua agora ex-namorada, leu de relance mais uma vez as primeiras frases:

Não me conheces, nunca me conheceste, nunca me compreendeste. Desculpa acabar contigo, eu amo-te mas tu nunca me amaste, pensaste que eu era outra coisa, outra pessoa…

Foi para a porta de casa e procurou o guarda-chuva, não havia guarda-chuva. Tinha-se esquecido que o tinha perdido. Pensou para com ele:

Devia ter ficado na cama, é mais agradável sair de casa no sonho do que hoje …

Carlos Cardoso
29/04/04

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Ali...o tempo todo…

Ao entrar para o corpo não o sentiu, queria uma libertação, simples, eficaz, lenta e definitiva. O pó não lho dava, a única coisa que o pó lhe dava era um nó destruidor no estômago, um arrepio que lhe arrancava a espinha, uma tortura forte, seca e gelada que teimava em não ser suficientemente forte para acabar com tudo.

O Dealer garantiu-lhe, duas doses chegariam para acabar com um cavalo, e ele sentia-se pesado como um. Não aguentava mais o passar do tempo, o fim inevitável dos dias, o começo da dor.

Os gritos de quem o devia apoiar entravam-lhe constantemente pela cabeça, e se apenas entravam à noite, ecoavam pela madrugada e tinham o seu ponto máximo a meio do dia. Mais do que o suor gelado que lhe percorria o peito, eram os gritos que o assaltavam e torturavam, esses frios e agudos gritos que a cada dia estavam mais altos. Não havia escape, não havia maneira nenhuma excepto aquela.

Caminhando pelo vento avassalador e pela chuva que lhe magoava a cara, foi dar ao prédio. Ouvindo os gritos segundo após segundo tentou desesperadamente entrar em casa, mas já o vil remédio lhe entorpecia os dedos. Na ânsia de fugir tomou-o todo mesmo antes de dar três passos para longe do Dealer. Tinha-lhe chamado o “Sabor terreno”, tinha-lhe dito que aquilo, ou o mataria ou salvaria. Não lhe tinha ligado, o próprio Dealer era daqueles burros que tomava os próprios produtos, por isso o que quer que seja que ele dissesse não importava, podia afinal estar ainda mais pedrado do que ele. Queria abrir a porta mas as chaves tornavam-se disformes, moldavam-se de maneira a que os seus dedos não lhes tocassem, a porta tornava-se distante, esticava os braços e batia com a cara na porta, não compreendia esta falta de sensibilidade quanto ás distancias. Mas também não importava, de dentro alguém tinha aberto a porta para sair, soube-o porque deu com o nariz nos sapatos desse indivíduo. Levantando-se desajeitadamente subiu o primeiro lance de escadas em espiral que, de um momento para o outro pareceu-lhe virar primeiro para a esquerda, depois para a direita e depois a direito para cima. Conseguiu subir as escadas por uma simples razão, durante dez segundos uma dor de cabeça atravessou-lhe o cérebro, forte, rápida e aguda acertou-lhe os sentidos momentaneamente.

Entrou na casa que se encontrava vazia, dirigiu-se ao sofá velho e deitou-se, adormeceu, sonhou que estava a voar sobre a sua rua, mas abriu os olhos, caiu em direcção á sua vida anterior, com todas as pessoas a colocarem-se á frente do seu passo, fazendo-o tropeçar.

A porta abriu com um barulho ensurdecedor, ela entrou aos berros, gritando obscenidades para ele, acordou de repente com dores no corpo, o olhar turvo, ele não hesitava em levantar-se, mas o seu corpo sim. Sentiu a mão dela embater-lhe no rosto, viu a sala cair de lado, a parede girou, disforme, sentiu o quarto tremer ao bater com a cabeça no chão, os gritos continuaram, incessantes, ensurdecedores.

No meio de todo aquele caos uma pergunta assaltava-lhe os sentidos, para onde teria ido ela, aquela que lhe chamava a atenção, aquela que, com os seus dezasseis anos e com os seus longos cabelos, o tinha beijado enquanto ele permanecia imóvel com medo de desvanecer a imagem, onde estava ela?

A sua pele não era a mesma, a cara não era a mesma, o corpo não era o mesmo, nada era o mesmo. Ela era uma caveira num corpo escanzelado, irritantemente magra. Os dedos magros e compridos eram dolorosos. Já não tinha dezasseis anos, o cabelo era feio e os beijos eram um pesadelo de sabores guturais, o anjo tinha caído. Na queda tinha perdido tudo, brilho, esperteza, pureza, tinha-se tornado no espelho dele.

Era impossível continuar assim, havia ainda uma réstia de pureza naquele corpo que vociferava ofensas e obscenidades contra si. A questão era onde, onde estava tal pureza. Na superfície não era, não a via, sentia-o apenas quando fodiam. Era dentro dela que estava que estava a pureza. Soube-o, tal como sabia respirar, soube-o apenas, era dentro dela.

Uma dor aguda atravessou-lhe o corpo, explodiu-lhe na cabeça, limpou-lhe os sentidos, desentorpeceu-lhe o corpo, levantou-se, pegou-lhe na cabeça pelos cabelos. Com um simples arremesso arrombou um armário, largou a cabeça da mulher e tirou os cabelos velhos de entre os dedos. Ela estava imóvel, quase inconsciente.

Decidiu que se a pureza estava dentro dela, ele iria descobri-la, pegou num cutelo da cozinha e sentou-se em cima dela. O primeiro golpe atingiu-lhe o peito, mas este golpe era apenas para a fazer acalmar-se, para parar com os gritos na sua cabeça. O segundo era o golpe pretendido, abriu-lhe o estômago, era um golpe suficientemente grande para poder introduzir as mãos lá dentro. Largou o cutelo e procurou dentro do corpo dela a pureza, mas não encontrou. Continuamente tirava órgãos de dentro dela.

O corpo já não respirava. Parou, olhou e gritou em desespero, queria a pureza dela, necessitava da sua pureza. Não a encontrando levantou-se, o sangue caía como chuva do seu colo, a sala estava repleta de órgãos desfeitos e carne disforme e avermelhada. Olhou para ela no chão, deitado de costas o corpo era uma visão de terror, parecia tudo menos humano com aquele buraco dizendo-lhe que não era ali, mas ele sabia que estava dentro dela.

Quando outro raio de dor lhe atravessou o cérebro ele apercebeu-se, era durante o sexo que lhe sentia a pureza, e o corpo dela, com as pernas ligeiramente abertas, deitado no chão, clamava por ele. Com a calma e lucidez de quem sabe exactamente o que quer ele aproximou-se, desapertou as calças, tirou a roupa, levantou-lhe a saia e arrancou-lhe a roupa interior. Entrou nela, sem nunca ter desviado os olhos da sua cara. Entrou sucessivamente no corpo, sentia a pureza dentro dela, sentia-se a apropriar-se dela, sentia-se de novo poderoso.

No entanto algo estava diferente e ele sentiu-o. A pureza dentro dela desaparecia, ele tocava-lhe mas não a agarrava. Não havia reacções, não havia nada, o corpo era imóvel, frio, vermelho, vermelho como tinha sido da primeira vez, só que agora era imóvel e silencioso. Começando a chorar continuou, sem conseguir parar ele continuava a tentar encontrar aquela pureza perdida, tentou desesperadamente até estar quase a tomar o corpo por completo. Quando pensava estar a atingir o fim, uma dor aguda percorreu-lhe não só o cérebro, mas também a espinha. Gritou de dor durante minutos e desmaiou por cima do corpo.

Acordou em cima do sangue, da carne, das entranhas. Não se sentiu puro, não sentiu a pureza, não se sentiu poderoso.

Cheirou a morte, lambeu-a, tentou come-la, a pureza era ela, ali, morta, imóvel. Sentiu-a entre os dentes, sentiu-a desfazer-se na sua garganta… mas mesmo assim era inútil, ele queria a pureza nas mãos, queria senti-la nos dedos, vê-la com os próprios olhos, queria ser o Deus daquela pureza.

Não a viu, não a sentiu, de facto não sentia nada e pôs-se a pensar, se ele tinha consumido a pureza de tantas maneiras, então ela estava dentro dele. Sentiu-se enjoado com a ideia, mas feliz, riu como um louco. Pegou no cutelo e abriu a barriga, cortou-se, viu o sangue cair, meteu a mão por dentro da barriga. Entre gritos de felicidade foi percorrendo o seu próprio corpo… ela haveria de ali estar. Por entre as descobertas do próprio corpo sentiu então o raio final, um relâmpago de dor atravessando-lhe o corpo, modificando-lhe todos os órgãos, destruindo-lhe tudo.

Acordou da droga, da dose, sentiu as dores, sentiu o corpo a ficar gelado, a adormecer, olhou para baixo, viu o seu corpo destruído, olhou para o lado, viu a sua companheira desfeita, de pernas e barriga abertas, no chão, sem se mexer.

Tentou levantar-se para o telefone, mas as pernas pareciam-lhe partidas, olhou a morte nos olhos, viu-a no espelho, a perder sangue e órgãos.

Lembrou-se das palavras do Dealer, “isto ou te liberta ou te mata”, ele não sabia se estava a ser libertado, se tinha libertado alguém…ou se estava a morrer. Arrastou-se para o corpo da sua companheira, abraçou-a, amaldiçoou-a por se ter tornado impura, abriu-lhe os olhos e viu que eram os mesmo de quando ela tinha 16 anos… era ali …a pureza tinha ali estado o tempo todo, quando levantou a mão para lhes tocar o coração parou, o sangue não correu mais, e a sua cabeça caiu-lhe no peito. Libertado ou não ele viu a pureza antes de morrer…

Carlos Cardoso

14/11/04

domingo, 2 de novembro de 2008

O que é que sou?

Acorda

Acorda desse corpo adormecido, levanta-te e sente o vento frio a entrar pela janela aberta. É quase inverno e o pequeno cobertor e lençol já não te aquecem nas noites.

Aqueceram um dia quando havia um corpo quente a teu lado. Movimenta a tua vida para fora dessa utopia que carregas dentro da tua mente.

Não podes voltar atrás. Carrega a cruz e põe um sorriso. Coloca o sorriso para ti, para mim, para ele, para ela, para eles, para elas, para quem olha, para quem te toca, para quem não te toca, para quem pensa que te toca… para quem não sabe que te toca.

Toca-te, é preciso saberes de que é feita a tua carne. É carne? Tem sangue a passar por ela… é carne e mexe-se…

Salta, é carne, dança, é sangue, fala, é ar que sai de ti, berra… és tu que sai de ti.

Ignora a dor, a carne sofre e a dor física consegue ser muitas vezes mais insuportável que a dor de que todos se queixam.

De que se queixam?

É já meio-dia, que esperas? Um empurrão nunca dado por alguém? Vai e toca na tua pele nas outras pessoas. A tua pele está lá, és tu que eles são… que são eles sem ti? Se tu os trouxeste uns aos outros… que são eles sem ti… que és tu sem eles? Sem os trazeres não serias quem és… és o que os outros são, são o que tu és, o que é que és sem as tuas acções sobre eles… que é que são sem as suas acções sobre mim?

Quem é que sou quando não os tenho… que é que são quando não me têm?

É de noite já, e adormece o corpo com as substancias… faz algo, sé tu próprio… não sejas tu próprio, isso já não dá resultado. O que é que tens de ser para te fazeres notado de novo? O que é que tens de ser? Sé o que já foste para o ser de novo… mas ainda o és… sé mais do que foste… assim notará, notarão… que tens de ser? Que tenho de ser? Que têm eles de ser? Será que ele, ela, eles, elas ainda são o que foram para responder ao que eu já fui? Será que não me respondo ao que quero ser? Que quero ser? Ela, ele, elas, eles já se foram… o que és tu? O que sou eu. De quem é esta mão… esta cara… esta carne?

O que é que tenho de ser para voltar a ser o que era para aqueles que ainda quero que sejam?

O que quero que a minha pele seja?

Fecha a janela e puxa o cobertor… já não tens um corpo quente ao lado.

Diz-me… és um corpo quente? Sou um corpo quente?

02/11/08