segunda-feira, 22 de maio de 2006

Que tipo de morte és tu?

Vamos fugir, só durante um bocadinho. Arranjamos o teu carro e fugimos para um sítio que tenha sol, é simples, eu tenho um pouco de dinheiro guardado, nunca o gastei, nunca tive ninguém com quem o gastar. Eu arranjo um emprego quando lá chegarmos. Ninguém precisa de saber, ninguém precisa de nos impedir.

Não temos que ficar aqui, não temos de sentir todo o peso.

Vens comigo ou não? Sabes bem que não há aqui nada para ti. Não temos amor, não temos sorte, não temos felicidade. Foge comigo, só durante um bocadinho. Vamos pela estrada fora, é Verão e ninguém precisa de vir atrás de nós. Nunca ninguém virá atrás de mim e, os que vierem atrás de ti desistirão. Vamos guiar de noite, dormir de dia numa praia, dentro do carro, à beira da estrada, em algum sítio.

Deita-te comigo e toca-me com a coxa, abraça-me pelas costas, beija-me a nuca e arranha-me o peito. Torna-me único com as marcas dos teus dedos, com o sabor da tua língua. Torna-me naquilo que durante anos não fui. Liberta-me, eu prometo que um dia farei isso por ti. Não chores mais, não esmagues a cabeça contra o volante, não apertes o peito nas mãos. Usa este carro para fugir, se não tens nada aqui foge.

Disseste-me que aceitavas. Uma noite, só terias que aguentar uma noite e mais nada. Às 5 da manha eu estaria ai, exactamente quando o sol nascesse. Deixarias tudo para trás, essa casa cuja forma parecia pairar sobre ti. Essa repressão, uma necessidade de a manter arrumada que te mantinha constantemente assustada, o peso de um punho que se abatia sobre ti se algo estava fora do lugar. Disseste-me que o meu toque te acalmava, sussurraste-me ao ouvido que um dia o meu olhar te fez sentir desejada. Eu sei que sou novo, mas poderia ter fugido contigo, eu sei que tinhas apenas 32 anos e eu metade disso, mas eu podia ter-te protegido.

Cheguei a tua casa e escondi-me na garagem durante 20 minutos. Não ouvi nenhum som durante esse tempo todo. Deixei a minha mala no chão e entrei na casa, um silêncio enorme habitava cada divisão daquela lúgubre casa de dois andares. Visitei cada quarto e encontrei-te a ti na cama onde te tive pela primeira vez, não na tua que essa tinha te violado. Encontrei-te no quarto ao lado, no quarto que seria um dia para a tua filha que nunca nasceria. Encontrei-te com o lábio desfeito e um olho negro e pensei que estarias a dormir. Encontrei-te morta, com uma garrafa de gin e um frasco de comprimidos vazio. Tinhas a camisa rasgada, o peito à mostra, as marcas de dedo ainda lá subsistiam.

Disseste-me que o teu coração era meu e, durante 1 hora olhei-te em silêncio, convencido que não conseguiste aguentar nem mais 1 minuto. Fui à cozinha e trouxe uma faca afiada. Abri-te o peito, desfiz tudo até chegar ao teu coração. Não o tirei porque ele não me pertencia. Em vez disso tirei do bolso o pequeno colar que tinha comprado no dia anterior, o símbolo do nosso recomeço, uma pequena pedra azul. Um azul tão profundo que só existia nos teus olhos. Coloquei-o em cima do teu coração e sai. Peguei no teu carro e fugi, fui viver a nossa vida. Não durou e cedo me juntei a ti.

Carlos Cardoso

22/05/06