segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Ali...o tempo todo…

Ao entrar para o corpo não o sentiu, queria uma libertação, simples, eficaz, lenta e definitiva. O pó não lho dava, a única coisa que o pó lhe dava era um nó destruidor no estômago, um arrepio que lhe arrancava a espinha, uma tortura forte, seca e gelada que teimava em não ser suficientemente forte para acabar com tudo.

O Dealer garantiu-lhe, duas doses chegariam para acabar com um cavalo, e ele sentia-se pesado como um. Não aguentava mais o passar do tempo, o fim inevitável dos dias, o começo da dor.

Os gritos de quem o devia apoiar entravam-lhe constantemente pela cabeça, e se apenas entravam à noite, ecoavam pela madrugada e tinham o seu ponto máximo a meio do dia. Mais do que o suor gelado que lhe percorria o peito, eram os gritos que o assaltavam e torturavam, esses frios e agudos gritos que a cada dia estavam mais altos. Não havia escape, não havia maneira nenhuma excepto aquela.

Caminhando pelo vento avassalador e pela chuva que lhe magoava a cara, foi dar ao prédio. Ouvindo os gritos segundo após segundo tentou desesperadamente entrar em casa, mas já o vil remédio lhe entorpecia os dedos. Na ânsia de fugir tomou-o todo mesmo antes de dar três passos para longe do Dealer. Tinha-lhe chamado o “Sabor terreno”, tinha-lhe dito que aquilo, ou o mataria ou salvaria. Não lhe tinha ligado, o próprio Dealer era daqueles burros que tomava os próprios produtos, por isso o que quer que seja que ele dissesse não importava, podia afinal estar ainda mais pedrado do que ele. Queria abrir a porta mas as chaves tornavam-se disformes, moldavam-se de maneira a que os seus dedos não lhes tocassem, a porta tornava-se distante, esticava os braços e batia com a cara na porta, não compreendia esta falta de sensibilidade quanto ás distancias. Mas também não importava, de dentro alguém tinha aberto a porta para sair, soube-o porque deu com o nariz nos sapatos desse indivíduo. Levantando-se desajeitadamente subiu o primeiro lance de escadas em espiral que, de um momento para o outro pareceu-lhe virar primeiro para a esquerda, depois para a direita e depois a direito para cima. Conseguiu subir as escadas por uma simples razão, durante dez segundos uma dor de cabeça atravessou-lhe o cérebro, forte, rápida e aguda acertou-lhe os sentidos momentaneamente.

Entrou na casa que se encontrava vazia, dirigiu-se ao sofá velho e deitou-se, adormeceu, sonhou que estava a voar sobre a sua rua, mas abriu os olhos, caiu em direcção á sua vida anterior, com todas as pessoas a colocarem-se á frente do seu passo, fazendo-o tropeçar.

A porta abriu com um barulho ensurdecedor, ela entrou aos berros, gritando obscenidades para ele, acordou de repente com dores no corpo, o olhar turvo, ele não hesitava em levantar-se, mas o seu corpo sim. Sentiu a mão dela embater-lhe no rosto, viu a sala cair de lado, a parede girou, disforme, sentiu o quarto tremer ao bater com a cabeça no chão, os gritos continuaram, incessantes, ensurdecedores.

No meio de todo aquele caos uma pergunta assaltava-lhe os sentidos, para onde teria ido ela, aquela que lhe chamava a atenção, aquela que, com os seus dezasseis anos e com os seus longos cabelos, o tinha beijado enquanto ele permanecia imóvel com medo de desvanecer a imagem, onde estava ela?

A sua pele não era a mesma, a cara não era a mesma, o corpo não era o mesmo, nada era o mesmo. Ela era uma caveira num corpo escanzelado, irritantemente magra. Os dedos magros e compridos eram dolorosos. Já não tinha dezasseis anos, o cabelo era feio e os beijos eram um pesadelo de sabores guturais, o anjo tinha caído. Na queda tinha perdido tudo, brilho, esperteza, pureza, tinha-se tornado no espelho dele.

Era impossível continuar assim, havia ainda uma réstia de pureza naquele corpo que vociferava ofensas e obscenidades contra si. A questão era onde, onde estava tal pureza. Na superfície não era, não a via, sentia-o apenas quando fodiam. Era dentro dela que estava que estava a pureza. Soube-o, tal como sabia respirar, soube-o apenas, era dentro dela.

Uma dor aguda atravessou-lhe o corpo, explodiu-lhe na cabeça, limpou-lhe os sentidos, desentorpeceu-lhe o corpo, levantou-se, pegou-lhe na cabeça pelos cabelos. Com um simples arremesso arrombou um armário, largou a cabeça da mulher e tirou os cabelos velhos de entre os dedos. Ela estava imóvel, quase inconsciente.

Decidiu que se a pureza estava dentro dela, ele iria descobri-la, pegou num cutelo da cozinha e sentou-se em cima dela. O primeiro golpe atingiu-lhe o peito, mas este golpe era apenas para a fazer acalmar-se, para parar com os gritos na sua cabeça. O segundo era o golpe pretendido, abriu-lhe o estômago, era um golpe suficientemente grande para poder introduzir as mãos lá dentro. Largou o cutelo e procurou dentro do corpo dela a pureza, mas não encontrou. Continuamente tirava órgãos de dentro dela.

O corpo já não respirava. Parou, olhou e gritou em desespero, queria a pureza dela, necessitava da sua pureza. Não a encontrando levantou-se, o sangue caía como chuva do seu colo, a sala estava repleta de órgãos desfeitos e carne disforme e avermelhada. Olhou para ela no chão, deitado de costas o corpo era uma visão de terror, parecia tudo menos humano com aquele buraco dizendo-lhe que não era ali, mas ele sabia que estava dentro dela.

Quando outro raio de dor lhe atravessou o cérebro ele apercebeu-se, era durante o sexo que lhe sentia a pureza, e o corpo dela, com as pernas ligeiramente abertas, deitado no chão, clamava por ele. Com a calma e lucidez de quem sabe exactamente o que quer ele aproximou-se, desapertou as calças, tirou a roupa, levantou-lhe a saia e arrancou-lhe a roupa interior. Entrou nela, sem nunca ter desviado os olhos da sua cara. Entrou sucessivamente no corpo, sentia a pureza dentro dela, sentia-se a apropriar-se dela, sentia-se de novo poderoso.

No entanto algo estava diferente e ele sentiu-o. A pureza dentro dela desaparecia, ele tocava-lhe mas não a agarrava. Não havia reacções, não havia nada, o corpo era imóvel, frio, vermelho, vermelho como tinha sido da primeira vez, só que agora era imóvel e silencioso. Começando a chorar continuou, sem conseguir parar ele continuava a tentar encontrar aquela pureza perdida, tentou desesperadamente até estar quase a tomar o corpo por completo. Quando pensava estar a atingir o fim, uma dor aguda percorreu-lhe não só o cérebro, mas também a espinha. Gritou de dor durante minutos e desmaiou por cima do corpo.

Acordou em cima do sangue, da carne, das entranhas. Não se sentiu puro, não sentiu a pureza, não se sentiu poderoso.

Cheirou a morte, lambeu-a, tentou come-la, a pureza era ela, ali, morta, imóvel. Sentiu-a entre os dentes, sentiu-a desfazer-se na sua garganta… mas mesmo assim era inútil, ele queria a pureza nas mãos, queria senti-la nos dedos, vê-la com os próprios olhos, queria ser o Deus daquela pureza.

Não a viu, não a sentiu, de facto não sentia nada e pôs-se a pensar, se ele tinha consumido a pureza de tantas maneiras, então ela estava dentro dele. Sentiu-se enjoado com a ideia, mas feliz, riu como um louco. Pegou no cutelo e abriu a barriga, cortou-se, viu o sangue cair, meteu a mão por dentro da barriga. Entre gritos de felicidade foi percorrendo o seu próprio corpo… ela haveria de ali estar. Por entre as descobertas do próprio corpo sentiu então o raio final, um relâmpago de dor atravessando-lhe o corpo, modificando-lhe todos os órgãos, destruindo-lhe tudo.

Acordou da droga, da dose, sentiu as dores, sentiu o corpo a ficar gelado, a adormecer, olhou para baixo, viu o seu corpo destruído, olhou para o lado, viu a sua companheira desfeita, de pernas e barriga abertas, no chão, sem se mexer.

Tentou levantar-se para o telefone, mas as pernas pareciam-lhe partidas, olhou a morte nos olhos, viu-a no espelho, a perder sangue e órgãos.

Lembrou-se das palavras do Dealer, “isto ou te liberta ou te mata”, ele não sabia se estava a ser libertado, se tinha libertado alguém…ou se estava a morrer. Arrastou-se para o corpo da sua companheira, abraçou-a, amaldiçoou-a por se ter tornado impura, abriu-lhe os olhos e viu que eram os mesmo de quando ela tinha 16 anos… era ali …a pureza tinha ali estado o tempo todo, quando levantou a mão para lhes tocar o coração parou, o sangue não correu mais, e a sua cabeça caiu-lhe no peito. Libertado ou não ele viu a pureza antes de morrer…

Carlos Cardoso

14/11/04

1 comentário:

Rosa Nobre disse...

retrato bem vívido de imagens negras e densas,,,, gostei do climax e anti.climax finais,,,, bom, gostei!