segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O acordar

Perdoem os erros gramaticais... era jovenzinho eu...

O Acordar


Acordou, e de um momento para o outro sentiu a água quente do chuveiro arrancar-lhe o ultimo vestígio de sono do seu corpo. Acordou sem dificuldades, sentiu o corpo seco debaixo de um roupão confortável. No quarto abriu a janela para um sol resplandecente que não lhe magoou os olhos, o gato não lhe mordia as pernas, mas antes sentava-se ao seu lado ronronando levemente. A roupa e o seu corpo uniram-se. Estava confortável como nunca havia estado. Os livros estavam leves debaixo do seu braço, as palavras neles escritas não faziam sentido mas ele não se importava. O cabelo ao vento não ia parar irritantemente á frente dos olhos, nesse dia permanecia no sítio que lhe era destinado. O café soube-lhe bem, não estava quente, não estava frio. A barriga não o incomodava quando estava sentado no café. O copo de água era fresco e não sabia a nada. O jornal não fazia sentido, mas ele lia-o religiosamente como se fosse algo normal. Não havia barulho no café senão o dos pássaros lá fora, carros passavam na rua mas o barulho não o irritava. Estava em paz. Levantou-se sem dificuldade, o dinheiro apareceu no balcão, disse até logo ao velho e foi-se embora. Os sons soavam-lhe como musica e não como o som irritante e desconcertante que todos os dias lhe moía o cérebro quando saia á rua. Não tinha dores nos pés, não tinha dores nas pernas, não se sentia fatigado, mas sim rejuvenescido, estranhamente não o estranhou. Caminhou solenemente com os olhos colados no sol que não o magoava. O vento não lhe atirava a roupa para trás causando-lhe desconforto. Não estava frio. Deu-lhe uma vontade de correr para uma praia só porque imaginou a frescura de um mergulho no mar. Fechou os olhos e lá estava ele, mergulhado no meio das ondas, o corpo fresco mas sem dor, as ondas eram enormes mas não perigosas sentiu algo nas pernas que não o deixava afundar-se mas não lhe ligou, era algo que o empurrava para cima, mas apenas o suficiente para ficar com a cabeça de fora da agua, ficou lá durante horas e horas, a pele não lhe ficou roxa, o corpo não teve frio, caminhou para fora da agua, abriu os olhos e encontrou-se de novo na rua. Continuou e pôs-se a pensar, enquanto caminhava quase de olhos fechados, que não houve necessidade de apanhar o autocarro nesse dia, nunca mais iria apanhar o autocarro. Isto deu-lhe um sentimento de alegria pois odiava o autocarro fechado onde toda a gente cheirava mal. Era abafado, escuro, poeirento, barulhento e apertado, odiava o autocarro e o seu condutor. Odiava tudo o que lhe tirava o uso ás pernas e lhe cortava a decisão de onde parar e onde andar. Sentiu-se de repente atrasado, cada vez mais atrasado, correu sem parar, correu mais do que todas as outras pessoas que corriam arrastando malas, crianças ao colo que não lhes ligavam nenhuma nem desejavam correr, algumas arrastavam carcaças desfiguradas de cônjuges, namorados ou namoradas enquanto gritavam desalmadamente que tinham de ir mais rápido, muito rápido, tinham de lá chegar mais rápido. Correu mais rápido que eles todos, saltando sem dificuldades sobre bancos e corpos deitados no passeio que não aguentaram a correria e se tornaram vagabundos. Chegou, sentou-se para descansar e em um segundo o seu corpo recuperou, perdeu o suor e o mau cheiro. Olhou para as pessoas que chegavam a correr e a sentarem-se, elas não recuperavam, ficavam molhadas, submersas no seu esforço e suor, correram tanto para apenas chegarem a um sítio que nunca iria a lado nenhum. Perguntaram-lhe aos gritos se ele tinha visto, se tinha lido, se tinha feito, se tinha pensado, berravam-lhe na cara, quase cuspindo enquanto gritavam. Tentaram agarrar-lhe o pescoço para o abanar e o obrigar a responder, mas havia uma barreira invisível que os impedia de lhe tocarem. Calmamente fitou-os, respondeu-lhes que não, que não havia feito nada daquilo que eles queriam, ordenou-lhes que desaparecessem e eles desapareceram. Não se sentiu nunca intimidado com eles naquele dia. Naquele dia ele mandava, tudo lhe saia bem, tudo lhe corria bem. “Um bom dia”, pensou ele levantando-se da cadeira e saindo de novo para encontrar toda a gente parada á espera de uma voz que lhes dissessem para onde ir.
De repente uma voz saiu de uma janela qualquer. Ordenou-lhes que se dirigissem para as aulas. Não sabia se teria sido uma voz tirana ou apenas um sinal sonoro, ou mesmo uma voz imaginária dentro das suas cabeças que lhes dizia as horas correctas para se moverem para os seus lugares. Neste dia a voz não o irritou, pelo contrário a voz confortou-o. Contente por ter ouvido algo que lhe dissesse o que ele queria, dirigiu-se à sala de aula. Estava a sala vazia, entrou, escolheu o lugar ao lado da janela onde uma brisa agradável entrava e o sol lhe batia apenas nas pernas. A brisa nesse dia não lhe cheirava mal, não tinha o cheiro das máquinas que lá fora costumavam trabalhar. O sol não o chateava nem lhe dava calor a mais. Pelo contrário, aquecia-o até ao ponto de ele ficar mole e descontraído.
O professor era o mesmo de sempre, mas tinha perdido o ar malvado, andava descontraído, sorrindo para os alunos que tinham aparecido na sala sem mais nem menos.
Para sua admiração o professor sentou-se na mesa com as pernas cruzadas, falou alegremente aos alunos dizendo que naquele dia iriam descobrir algo que não sabiam.
Iriam pensar por eles próprios disse o professor. Os alunos contorceram-se desconfortavelmente nas suas cadeiras. Pensar por eles próprios, usar pensamentos criativos, que ideia nova era esta que eles não compreendiam? O professor rindo-se das suas figuras como quem ri de um gato que corre atrás de uma mosca acalmou-os.

- Calma gente… é apenas para vocês descobrirem que podem pensar como aqueles que vocês estudam, nunca serão avaliados pelo vosso pensamento, para dizer a verdade, vocês nunca foram em algum momento da vossa vida avaliados pela maneira como pensam.

Imediatamente os alunos calaram-se e ficaram tranquilos á excepção de alguns sussurros de admiração.
Acordado pela brisa agradável da janela, o rapaz alegrou-se, finalmente iria ser senhor dos seus pensamentos, iria poder expor o que achava.
O professor disse que deixaria os alunos escrever sobre o que quisessem, desde que fosse algo relacionado com algo que amassem.
Com isto ainda mais contente o rapaz ficou, escrever algo sobre as coisas que amava não seria difícil para ele. Pôs-se direito na cadeira e pegou na caneta para começar a escrever no papel. Olhou em frente e viu os outros alunos parados, a olhar uns para os outros sem saberem o que fazer. Pensou se eles amariam alguma coisa, pensou se eles estariam dispostos a dizer no papel o que amavam no que amavam.
Quando baixou a cabeça para o papel para começar a escrever sobre o que adorava e achava tão fascinante sobre mergulhos no mar, notou pelo canto do olho numa rapariga que nunca tinha visto. Sentada á janela a apanhar uma leve brisa enquanto o sol lhe aquecia as pernas, ela apoiava o cara na mão enquanto esperava que os outros acabassem de escrever. Ela tinha um molho de páginas escritas em cima da mesa. Ele pensou como é que ela poderia escrever sobre algo que amava tão rapidamente, que será que ela amava tanto ao ponto de poder dizer rapidamente tantas coisas sobre o que quer que amasse!?
Ele olhou para ela demoradamente. Tinha roupas que pareciam uma segunda pele de tão adequadas que eram, uma combinação da cor verde e da cor laranja nas roupas cobria-lhe o corpo. Os olhos verdes e grandes olhavam para a janela em direcção ao mar que se via da janela. O cabelo era ligeiramente encaracolado, ou talvez ondulado pelos ombros. Não parecia um cabelo normal, era vivo, se ela se mexia o cabelo mexia-se com ela, tinha uma cara vulgar mas linda, era uma daquelas caras que adquiria beleza quando fazia uma expressão, se ela sorria ou suspirava, a cara dela mudava e apareciam novos aspectos que não tinham antes aparecido. Era como olhar e estar á espera que aparecessem umas covinhas na cara dela quando sorria e se espreguiçava por estar tão preguiçosa.
O rapaz apaixonou-se logo ali, mas não era amor, era fascinação, paixão. Olhava-a sem conseguir desviar os olhos, ela deixou escapar um sorriso quando viu que ele a olhava.
O rapaz decidiu escrever sobre ela, achou logo ali que se tinha apaixonado e que a amava. Se tinha que escrever sobre algo que amava então porque não escrever sobre ela pensou ele. Concentrou-se e pousou a caneta no papel para começar a escrever. Mas quando ia para começar a escrever lembrou-se de que não sabia nada sobre ela, nem sequer o seu nome. Pensou que mesmo assim poderia escrever algo sobre ela, afinal de contas amava-a. Olhou de novo para ela e ficou de novo calmo e tentou escrever. Lentamente o sol desapareceu da sua janela, a tarde avançava e o sol também. Sem o sol o vento tornou-se frio e ele fechou a janela, minutos passaram e o papel estava em branco. O rapaz sentiu-se a ficar abafado naquele canto, tirou a camisola pois estava cheio de calor, quando a tirou, notou que a T-shirt estava molhada de suor. Sentiu-se desconfortável. O suor incomodava-o, fazia com que se sentisse sujo, inaceitável. Tentou mesmo assim escrever, olhou para a rapariga para se acalmar, mas quando levantou a cabeça ela olhava-o com o olhar triste, o sol também tinha desaparecido da sua janela e o vento tornara-se frio.
O professor entrara na sala com uma cara severa dizendo:
- O sol desapareceu, o vento tornou-se frio, estou chateado, espero que tenham escrito alguma coisa que me agrade.
O rapaz olhou para o seu papel onde inconscientemente escreveu sem parar “ Não conheço o que amo”. Escreveu isto em páginas e paginas e paginas. Entretanto o professor pedia as folhas de volta, todos tinham escrito algo, a rapariga entregou uma folha com uma frase apenas e atirou as outras pela janela.
O professor dirigiu-se a ele com uma cara severa dizendo:

- Isso demora muito ou queres escrever mais uma vez a mesma frase!?

Entregou as folhas e correu lá para fora ouvindo o professor a gritar entre risos sádicos e gozões:

- Para onde corres seu burro!? Até parece que tens algo á tua espera …

Chegando lá fora perguntou aos berros onde estava ela, para que lado tinha ido. Obrigou-os a responder quando os agarrou pelo pescoço. Apontaram-lhe a direcção certa e ele correu, correu ultrapassando todos até que a viu ao longe. Estranhou ter demorado tanto tempo a apanha-la visto que ela caminhava lentamente. Tentou correr mais depressa, queria alcança-la a todo o custo mas quanto mais corria, quanto mais desejava tocar-lhe, mais ela parecia distante. Desesperado tentou puxa-la, estava a centímetros dela mas mesmo assim parecia não conseguir tocar-lhe. Chorando ajoelhou-se e gritou para que ela parasse e o ouvisse.
A rapariga voltou-se para trás e perguntou-lhe porque corria ele quando caminhar na direcção certa bastava. Porque gritava ele quando falar bastava.
O rapaz levantou-se lentamente sem nunca tirar os olhos da cara da rapariga dizendo-lhe que a amava, que a queria conhecer porque a amava, queria saber tudo sobre ela porque a amava.
A rapariga desiludida respondeu com uma pergunta:

- Como podes amar o que não conheces!? Como podes tu querer conhecer algo que dizes amar, quando podes vir a odiar quando passares a conhecer!? Tu não me amas, nem nunca me amarás, poderás vir a odiar-me, mas nunca me amarás porque o que amas não é eu, mas outra pessoa com a minha cara…

O rapaz desiludido mas calmo, perguntou á rapariga o que tinha ela escrito no papel que entregou ao professor. Ela respondeu que tinha escrito que amava quem se dava ao luxo de perder horas e horas a conhecer as coisas antes de as amar.
Fechou os olhos zangado com as suas asneiras, quando os abriu já lá não estava a rapariga, ao longe ela caminhava debaixo do sol com a brisa a parecer que a empurrava para longe dele.
Levantou-se na sombra, uma nuvem teimava em tapar o sol por cima dele tornando o vento frio, vento que passou de uma brisa para um vento tão forte que parecia querer arrancar-lhe tudo o que tinha.
Olhou em volta e viu de novo as pessoas a correr, a arrastarem carcaças, e no meio de uma delas encontrou um homem triste, desesperado arrastando a carcaça desfigurada da sua mulher. Era horrível, ninguém dizia nada, todos passavam a correr pelo pobre homem que carregava a carcaça, deambulando pelo fim de tarde escuro e ventoso, sem rumo o homem chorava.
O rapaz dirigiu-se a ele e perguntou se ele queria ajuda, o homem respondeu:

- Que sabes tu!? Eu não sabia, eu não sabia. Ela morreu e eu não sabia, não sabia nada, como posso lembrar-me dela se não é dela que eu me lembro, se não posso carregar as suas memórias carrego a sua carcaça pois era isso apenas o que eu conhecia…

Voltou a casa e deitou-se, adormeceu.
Acordou, levantou-se e deu um passo, bateu com a perna na cadeira, injuriou tudo e todos, enquanto abria a janela o gato mordia-lhe os pés a dizer que queria brincar. Doíam-lhe os olhos da luz da janela, chovia lá fora. A sua mãe entrou no quarto a berrar com ele para ele se despachar para ir para as aulas. A água quente do chuveiro aleijava-lhe as costas, a roupa estava desconfortável e amarrotada porque não se tinha dado ao trabalho de a dobrar antes de se deitar na noite anterior.
Levou a mão ao bolso onde encontrou a carta da sua agora ex-namorada, leu de relance mais uma vez as primeiras frases:

Não me conheces, nunca me conheceste, nunca me compreendeste. Desculpa acabar contigo, eu amo-te mas tu nunca me amaste, pensaste que eu era outra coisa, outra pessoa…

Foi para a porta de casa e procurou o guarda-chuva, não havia guarda-chuva. Tinha-se esquecido que o tinha perdido. Pensou para com ele:

Devia ter ficado na cama, é mais agradável sair de casa no sonho do que hoje …

Carlos Cardoso
29/04/04

Sem comentários: