segunda-feira, 5 de junho de 2006

Caminha comigo...

Caminha comigo

Nunca ninguém pensa verdadeiramente nisto. Era estúpido se assim fosse. Sabes disso não sabes? Que estúpido seria, levantares-te a meio da noite e pensares que mais valia fazeres parte do pó cósmico, do inaudível grito da humanidade.

Nunca acontece, afinal de contas somos saudáveis, temos comida na mesa, uma cama quente, amigos que nos adoram e família que nos ama. Levantamo-nos de manha e temos um trabalho, ou pelo menos alguns têm. E é bom, é muito bom saberes que vais ganhar dinheiro e contribuir com algo para algo. Se não tens trabalho estudas. Aprendes, evoluis e tornaste em algo melhor. Pensas que não pensei nisto? Pensas que em todos estes momentos a minha mente não se questiona sobre se será mesmo isto?

Eu vou falar e tu vais ouvir, vais ouvir como se eu estivesse prestes a dar-te dinheiro. Só assim terei a tua atenção sem nenhuma interrupção. A minha vida é como caminhar em Aveiro à noite. Começa pelo sítio das luzes, uma rotunda desnivelada onde toda a gente passa para fazer duas coisas; ou vão comprar algo para um dos lados, satisfazer essa sede ou, vão satisfazer outra sede na praça.

Cala-te e não me julgues snobe e arrogante por dizer que são todos consumistas e bêbados. Eu sei que são assim porque eu também o sou, sou uma daquelas pessoas que tendo dinheiro compra, tendo dinheiro gasta numa bebida à noite. Sim, eu sei que sou assim, não porque seja fraco mas porque sou apenas eu, eu e mais ninguém, e sou igual a tanta gente que me mete nojo. Eu sou eu, único na minha parecença com todos.

Mas há uma diferença entre todos e eu, eu caminhei mais alem, para fora das luzes subi pela avenida exactamente à meia-noite. E deixa-me que te diga o que vi, uma cidade prestes a perder o brilho, uma cidade abandonada e demente. Já olhaste bem para o Oita? É uma pena, um dia foi o centro de Aveiro. Agora, no meio de uma avenida cada vez mais escura e solitária, ele agarra-se com unhas e dentes ao passado, tentando sobreviver, aceita tudo o que aparece, lojas estranhas que ninguém quer e filmes lindos e desconhecidos. Já olhaste para as pessoas que frequentam este sítio durante a noite? Proscritos da cidade, moradores do passado.

Mas esta parte nem sequer é a má. Esta ainda vive, agarra-se com tudo o que tem à vida. Se caminhares mais vês os prédios mais antigos, as rachas que agora esfolam as paredes, os antigos estabelecimentos de outrora com sinais de “trespassa-se”.

E depois olha para ele, um simples cinema fechado, aquele que foi para mim o cinema mais confortável de todos os tempos. Sabes que ainda me lembro da noite de estreia do Batman, o primeiro, o do Tim Burton. Acreditas que havia uma fila até cá fora para entrar? Eu lembro-me dos meus pais me levarem, lembro-me de os ouvir falar sobre se conseguiriam comprar bilhete. Fiquei triste ao ouvir isso mas o meu pai lá comprou os bilhetes, e lembro-me do sorriso da minha mãe ao ver-me a entrar para o cinema e sentar-me mesmo no meio da sala. Foi a ultima vez que me senti puro e sereno com felicidade.

Se olhares para lá agora está fechado e sujo, ninguém vai lá e à noite é apenas um lugar escuro e morto. Os postes de luz são antigos e a sua luz fraca, as árvores gigantes da avenida tapam-nos e, de vez em quando, lá passa um carro em direcção às luzes.

É aqui que acaba, não porque quero que acabe mas porque simplesmente acaba.

Estudo e vivo, amo e sou amado, compro, bebo, observo e caminho. Sinto-me como esta cidade, uma luz enorme ao princípio, tal como a minha vida. Lentamente tudo passa, ficam memórias e velhos hábitos. Memórias boas e carinhosas, até ao dia em que começam a pesar, depois fecham-se e tornam-se escuras e velhas até serem tão pesadas que não as consigo carregar.

Por isso caminhei até aqui, até ao fim da avenida, por isso te pedi que viesses cá ter comigo.

Para em frente à linha e diz-me o que vês.

- Nada, não vejo nada de diferente. –

Então olha para os dois lados.

- Uma linha de comboio, uma para sul, outra para norte… –

Eu não posso ficar aqui, tenho de ver mais, de viajar mais, de pensar mais, de me sentir mais feliz e, esta cidade é pequena e morre. A cada centímetro dela que morre eu morro, a cada parede que racha uma memória minha se esvai… compreende por favor.

- Faz o que tens a fazer, sempre é melhor que te tentares matar de novo, tens razão, nunca ninguém pensa verdadeiramente em se matar, nunca ninguém acorda com suores frios a meio da noite com medo de viver. É impensável a alguém feliz que isso aconteça. Só que tu não és feliz –

Ainda bem que compreendes. –

Hoje é dia 5 de Junho, são 00:45 exactas. Daqui a um ano estarei aqui à tua espera, nem mais um segundo. Adeus –

Adeus.

Nunca pensei em matar-me… mas tentei faze-lo, nunca pensei em ama-la… mas amei-a, nunca pensei em fugir… mas estou a fugir, não penso em voltar, mas nunca se sabe…

Vou para o sul, o norte é demasiado amigável.

Carlos Cardoso

05/06/06

3 comentários:

Anónimo disse...

Que posso eu dizer? Vivo também nesta cidade, como todos os outros habitantes, partilho-a com o céu quando o "caminho" me foge... E claro, a última frase é a minha favorita, para acabar em "grande" ou em "pequeno", não sei bem... Ambas me satisfazem, é tudo muito relativo :P É um texto belo e descritivo... Sim senhor! Comoveu-me e fez-me pensar... É tudo o que eu queria *

Anónimo disse...

Gostei muito, claro está. Porque é fluido, acessível sem ser banal, despretensioso. A nostalgia que inflige no leitor acaba por ser quase incontornável; apesar de triste, a descrição surge-me como um passar de mão pela cabeça, um consolo, ou aquela palmadinha de amigo nas costas. Agrada-me especialmente por isso.

E as imagens que sugere estão fieis á (minha) realidade, dou por mim a filtrá-la usando as mesmas lentes que tu.

Tenho a dizer que fizeste um belo trabalho, a sensibilidade é uma das keywords, aqui.

Os meus parabéns :)

Anónimo disse...

lembro-me que já falámos nisto.. e lembro-me de falarmos nas vielas e nos cheiros e fumos que queremos sentir em NY.. lol

quem fôr primeiro chama o outro! combinado?